Por que o mundo das crianças está
situado numa espécie de reino, o mais distante possível da nossa realidade, um
reino repleto de fantasias, de coisas fáceis, de pessoas gentis, onde o bizarro
é coisa inexistente, onde os problemas e dilemas humanos não são sequer
mencionados, isso, não temos como saber.
Mas, sabemos que é assim. Assim
foi definido. É a prática comum desde incontáveis gerações, é a conduta aceita
e glorificada pelas regras sociais que regem cada nação desse mundo, pelos
especialistas que definem aquilo que para todos nós é o melhor.
Um mundo onde não existem
doenças, onde o mal é tratado como um vilão que atua de fora para dentro do
indivíduo humano, como se não fosse parte integrante deste; onde a violência é
retratada como uma coisa romântica, capaz ser resolvida pela simples presença
de um super-herói ou divindade, que de repente irá surgir do nada, ou sempre
que solicitado for.
Um mundo utópico, abstrato, onde
os sonhos se concretizam, onde apenas as coisas que dão certo são mencionadas.
Um centro, onde a realidade é totalmente deixada de lado, onde o idealismo e
fantasia dos chamados contos de fada, que nos chegaram a partir da idade média,
criados pelos devaneios de alguns escritores para entreter um público carente
de sonhos, que viviam sufocados pela opressão dos costumes da época, uma
concepção surreal que logo, no imaginário de cada um, se tornaria tão real
quanto as coisas concretas.
Eis a base de toda nossa
educação, ao menos a ocidental, onde quer que estejamos, como crianças que
somos. Se vivemos em um mundo de constantes desafios, onde os problemas e
múltiplas atividades do nosso dia a dia preenchem todas as nossas horas de
vigília, onde aparentemente dormimos a acordamos mergulhados em disputas sem
fim, o que pretendemos, enfim, como objetivo de vida?
Como podemos mudar o rumo das
“coisas” se estas regem todos os nossos passos? Não estamos no controle, as
circunstâncias sim. Somos regidos na íntegra, não pela nossa vontade e querer,
mas pela necessidade constante de solucionar problemas. Resolver problemas,
grandes ou pequenos, esse é o nosso objetivo claro de vida. Não os criamos,
foram criados antes de existirmos, mas, por que regem nossas vidas, essa é uma
questão pendente de respostas.
Se ensino para meu filho que
existe um mundo imaginário, para ele isso é coisa real, onde todos são capazes
de, pela vontade, viverem qualquer tipo de sonho que seja possível de se criar
pelo pensamento, como espero que devam reagir ao descobrirem, mais tarde,
sufocados pela competição da vida, que tudo não passara de uma grande ilusão,
mentira?
Por incrível que possa parecer,
irão ensinar a mesma coisa para seus filhos. Mas, como adultos, dentro de seu
imaginário mais profundo, aquela ideia ainda permanece, agora amparada pela
força de suas crenças pessoais, que lhe prometem aquele mundo, onde as
fantasias de infância são, de fato, uma realidade à sua espera. Talvez por isso
mesmo, não haja um empenho efetivo em melhorar nada por aqui, afinal de contas,
de qualquer modo, não faz diferença alguma, não será mais um mundo destinado
para nós.
Repetir costumes e modo de vida
dos outros, consequentemente, todos os antigos problemas não resolvidos, os
medos, as angústias pessoais, todo sofrimento que ao chegarmos já nos espera de
braços abertos, os desejos, as chamadas metas existenciais, a tudo isso
chamamos de viver. Não podemos escolher uma vez que tudo já está em andamento
quando adentramos no palco.
É como se, de repente, ao
cairmos, vindos não sei de onde, no leito caudaloso de um vasto rio,
deixássemos nos levar pela correnteza. Não há diferença, é uma analogia
perfeita para nossa situação. Levados pela enxurrada, resta-nos permanecer
boiando, agarrados a qualquer objeto que nos mantenha com a cabeça fora dágua,
para que não nos afoguemos. Ali não há tempo para pensar, e nosso maior desejo
é que aquilo nos conduza a uma margem segura, para enfim repousarmos.
Manter a cabeça fora da água
significa apenas, confiar na correnteza. Acreditamos que ela nos conduz a lugar
seguro, que finalmente irá desembocar em terra firme, um lugar sossegado, longe
daquela turbulência que ora nos ocupa em tempo integral.
Ocorre que, nossas crianças,
quando crescidas, irão enfrentar problemas concretos, problemas que ainda não
conseguimos resolver, e conhecê-los desde cedo, talvez, faculte-as a decidirem
melhor se, desejam permanecer, como nós, com eles a lhes preencherem as horas
do dia. Ensinar para a vida é mostrar-lhe desde cedo o que é o viver, suas
facetas, seus conflitos ainda não resolvidos, o imenso e complexo problema no
qual se tornou a aventura existencial do homem.
Para que a criança seja capaz de
resolver seus conflitos, que são os nossos atuais, precisam, desde cedo a
conviverem com eles. Conflitos, ou os motivos que causam os mesmos, são coisas
que lhes ensinamos, assim como antipatia e empatia; a odiarem aqueles que nunca
conheceram, assim como a idolatrarem outros que são da nossa preferência, e
tudo isso faz parte do kit de instruções que lhes damos.
Se somos capazes de lhes ensinar
a não gostar ou gostar, a não desejar ou seu inverso, a não resolverem
problemas, como esperamos que haja uma transformação no mundo delas? Não mais
será nosso mundo, assim como não foi dos nossos antepassados que nos deixaram
de herança tudo que agora colhemos. Eles se foram, nos deixaram seus legados,
nós ficamos, deixaremos o mesmo legado também para nossos filhos?
Educar não seria lhes ensinarmos
como sair dessa imensa e complexa confusão que, embora não a tenhamos criado,
somos fiéis multiplicadores? Viver sem conflitos, sem medo, somos de fato
capazes de fazer tal coisa, ou melhor, temos tal potencial? Ainda não fomos
capazes de demonstrar de forma efetiva se isso, com nossa atual mentalidade e
tradições, é coisa possível. Se ainda não somos, quando, de que forma isso irá
acontecer um dia com nossos filhos? Haverá de repente, uma mudança, como se
fora o desejo de uma fada a empunhar sua mágica varinha de condão?
Importante é nos darmos conta de
que, uma personalidade é construída de partes, de eventos e exemplos que serão
imitados ou não. Não de trata de um processo de escolha voluntária, não para as
crianças. Criança não possui um acervo de vivências suficiente para capacitá-la
a escolher da forma mais apropriada, aquilo que lhe serve ou não. Ela tende a
imitar, assim como nós, os adultos, já fazemos desde muito tempo. Se temos a
nosso favor um lastro imenso de experiência de vida e ainda nos equivocamos em
nossas escolhas, o que podemos dizer das crianças, ou jovens?
Elas precisam de nossa ajuda.
Precisam conhecer um pouco sobre a vida que terão pela frente. Precisam
conhecer as pessoas, seus pontos fracos, suas possíveis falhas e limites.
Precisam saber que suas mães, periodicamente, quando sofrem bruscas mudanças em
seu humor, estão a passar por processos orgânicos naturais, que a moderna
ciência chamou de Tensão Pré-menstrual. Isso decerto evitaria um sem número de
conflitos internos com seus filhos, que por não compreenderem essa brusca
mudança de comportamento da mesma, logo tiram conclusões equivocadas, o que na
maioria das vezes acabam por afetar toda harmonia na convivência do grupo.
Precisam saber o que significa
ficar velho, afinal de contas, com sorte, a maioria delas também terá como
certeza dos seus dias vindouros, a mesma condição. Não se trata de um processo
de escolha voluntária, mas uma certeza. Então, por que isso lhes ocultamos como
se fora coisa inexistente? Não seria uma forma lógica de, além de criarmos um
maior vínculo de respeito com relação aos mais idosos, aos poucos estreitando a
clara indiferença que lhes delegam os mais jovens, também as alertamos para o
inevitável fato que a todos aguarda?
Se educar para a vida não passa
de repetir procedimentos de forma mecânica, como o ato de dar corda num
autômato para reproduzir alguma coisa, não devemos nos iludir, não há
possibilidade alguma de transformação pessoal de quem quer que seja, mas apenas
de mudança estética, uma maquiagem, no limitado e precário cenário onde todos
nós disputamos com unhas e dentes um espaço para sobreviver.
Fonte: educação Integral - Ester Cartago